Como é ser parte de um supermercado cooperativo

Quem me conhece sabe que tem um tempo que eu falo dessa tal cooperativa. Basta sentar comigo num bar que é bem provável que você vá ouvir, ou já tenha ouvido, da maravilha que é a BEES e talicoisa. Notei que ainda não tinha escrito nada sobre isso e achei que era uma boa ideia pra espalhar mais a ideia por aí.

Cresci em cidade grande e embora tivesse uma vendinha bem perto de casa, que tinha aquelas jarras de vidro cheias de balas pra eu pedir pra mamãe quando eu passava por lá no caminho do colégio, no geral pra mim supermercado sempre foi uma coisa com “super” no nome. Aquela história: um grande espaço, mil corredores e um estoque infindável de todo tipo de coisa.

A maioria dos supermercados cooperativos se baseam na idéia do Park Slope Food Coop (abre em uma nova janela ), em Nova Iorque. O Park Slope Food Coop foi fundado em 1973 e opera em um sistema em que para fazer compras no supermercado, a pessoa precisa ser uma cooperadora. Pra se tornar uma cooperadora, as pessoas pagam um valor uma vez (comprando uma parte na cooperativa) e pra manter seu status ativo, fazem um turno de trabalho de 2h45 uma vez por mês no supermercado, em tarefas que fazem o supermercado funcionar (estoque, manutenção, administração, etc).

Nunca visitei o Park Slope, mas o primeiro supermercado cooperativo que eu visitei foi La Cagette (abre em uma nova janela ), em Montpellier, no início de 2019 e eu fiquei imediatamente encantado pela ideia. A atmosfera do lugar era bem diferente, mais próxima da vendinha que eu me lembrava quando era criança. Ao invés do ambiente cheio de propaganda, com alguns produtos sendo iluminados como se fossem sagrados, o ambiente era bem mais tranquilo, as pessoas que entravam e saíam se conheciam e conversavam no caixa ou enquanto estavam estocando uma prateleira.

Um supermercado tradicional tem todos os elementos do capitalismo moderno: o marketing agressivo, descontos risíveis se você der informações suas e sempre se identificar quando faz compras de modo que eles possam fazer um perfil seu, funcionários mal pagos executando funções repetitivas por horas a fio (e muitas vezes mais de uma função ao mesmo tempo). Além disso, supermercados tendem a ter uma margem de lucro variável nos produtos, muitas vezes legumes ou macarrão são muito baratos e tem uma margem de lucro bem pequena, e quando você compra algo como uma caneta ou uma pilha, ou um produto orgânico, é nesse tipo de coisa que tem uma margem gigantesca.

Quando voltei pra Bruxelas depois de conhecer La Cagette, fui procurar pra saber se algo do tipo existia por aqui. E encontrei a BEES coop (abre em uma nova janela ).

A BEES coop começou como um grupo de compras, as pessoas que participavam do grupo tomavam decisões sobre o que comprar e compravam coletivamente para obter preços reduzidos pro grupo. Mas a ideia foi se transformando até que, também se inspirando no Park Slope, se transformou no atual supermercado cooperativo que funciona desde 2017.

O supermercado lembra um supermercado tradicional: tem cestas e carrinhos e uma gama de produtos que vai de arroz e carnes até produtos de higiene de peças de bicicleta. A grande diferença é na escolha do que entra na loja: essa escolha é também feita de maneira participativa, e prioriza produtos orgânicos, locais ou de cooperativas; e muitas vezes prioridade para o pequeno produtor, mesmo que não tenha o selo “xyz”, ao invés do grande distribuidor. Além disso, também tem um monte de coisa que é disponível a granel: macarrão, arroz, lentilha, sabonete líquido, vinho e mesmo azeite. Dá pra levar seu saco, pote ou garrafa e encher por lá mesmo.

Além dos cooperadores, existem seis pessoas assalariadas que trabalham em tempo parcial. Elas também trabalham na loja, mas uma grande parte do seu trabalho é de fazer os pedidos de produtos, decidir o posicionamento de produtos na loja, recepcionar encomendas e repassar às cooperadoras no início do turno quais são as tarefas pendentes para o turno atual.

Toda pessoa cooperadora tem um cartão, que lhe identifica na entrada da loja e com o qual pode fazer suas compras. Além disso, tem direito a nomear duas outras pessoas de mais de 18 anos que vivem sob o mesmo teto, essas não precisam trabalhar, são “comedoras” e ganham seus próprios cartões para fazer compras.

Eu, como cooperador, trabalho 2h45 na loja por mês. Às vezes fico no caixa, outras vezes reabastecendo prateleiras, na entrada da loja ou arrumando o estoque. Tem também gente que trabalha no escritório, recebendo novos membros, atualizando os status dos membros atuais e outras tarefas do tipo; Tem gente que trabalha no corte de queijos; Tem gente que limpa a loja e guarda os legumes na câmara fria no fim do dia; E tem gente que faz trabalhos em comitês específicos, como o comitê que organiza a assembléia geral ou o comitê que seleciona os produtos.

Um turno normalmente tem uma pessoa “supercooperadora”, que faz um treinamento com as pessoas assalariadas para saber mais sobre o funcionamento da loja, além de ser o ponto de contato das outras cooperadoras para ausências inesperadas. Além disso, é para a supercooperadora que os funcionários explicam quais tarefas tem mais prioridade no turno atual. Além dos trabalhos de sempre, como caixa e entrada da loja, as vezes entregas precisam ser organizadas no estoque, novos produtos precisam ser registrados no sistema da loja, ou as prateleiras de cerveja estão quase vazias e precisam de uma atenção especial ;)

Cada turno de trabalho na loja começa com os membros se reunindo, recebendo da supercooperadora as tarefas para o turno e então se dividindo pra realizar as tarefas. E depois de umas horinhas, todo mundo se despede, com o novo turno acontecendo só dali a 4 semanas.

Trabalhar e fazer as compras na BEES é uma experiência agradável. Não só você conhece os rostos que dividem seus turnos com você, mas você começa a encontrar as mesmas pessoas que fazem compras em horários similares a você, e depois a encontrar essas pessoas nas assembléias gerais. O comitê de vinhos as vezes coloca um aviso caloroso dizendo que eles acharam um novo vinho super gostoso e que você devia experimentar. Quando você está no caixa é normal ver as pessoas conversando dizendo que tal e tal produto são novos e são tão bons por causa disso e daquilo. E nos corredores é comum ver gente se reconhecendo e começando a conversar.

Uma coisa importante, que me perguntam com frequência é: “tá, tudo muito bonito, seu Lond, mas e o preço das coisas?”. E a verdade é que depende. Como eu disse lá no alto, um supermercado tradicional trabalha com uma margem variável de lucro, cada produto tem uma margem diferente. Na BEES a margem é constante. Todo produto tem uma margem de 20%. A loja não tem fins lucrativos, a margem está lá para a manutenção da loja e salários dos funcionários.

A nossa experiência é que o preço médio do carrinho é bem próximo do que é no supermercado tradicional. A gente também começou a comprar mais coisas orgânicas, porque o preço é bem próximo do não-orgânico no supermercado normal. Tem produtos mais caros e algumas marcas tradicionais simplesmente não são vendidos por lá.

E a quantidade plástico que a gente traz pra casa diminuiu de maneira espetacular. Os produtos de supermercado aqui tendem a ter muito mais embalagem plástica do que no Brasil, tenho impressão. E na BEES tem um incentivo ativo a reutilização, então a gente começou a usar sacos laváveis de pano pra legumes e granel, dá preferência pra embalagens de vidro que são retornáveis (ou mesmo quando não são, por aqui tem lixeiras especiais pra vidro, que são reciclados) e pra coisas como óleo e azeite a gente enche os galões a granel, reusando as mesmas garrafas de vidro pra encher de azeite na cozinha no dia-a-dia.

O projeto não é perfeito, claro, mas é uma demonstração agrádavel de que é possível se organizar de maneiras diferentes dentro do capitalismo, enquanto não saímos dele. Que é possível encontrar formas alternativas de fazer coisas essenciais como suas compras de mês que operam de uma forma coletiva, com uma preocupação ambiental e uma preocupação com o aspecto humano, com o trabalhador do outro lado da produção, evitando os grandes conglomerados que infectam a vida do dia-a-dia e tem tanto poder.

Tentei buscar um pouco e não achei projetos similares no Brasil. Sei que existem lojas, como o Armazém do Campo do MST, que tentam aproximar o produtor do consumidor e vendem produtos de assentamentos e de pequenos agricultores. Mas não achei nada com o mesmo modelo participativo, como a BEES ou Park Slope.

Em todo caso, deixo algumas sugestões pra você lendo esse texto: preste atenção o quanto de coisas você compra no supermercado é por causa de propaganda. Pense em comprar mais coisas a granel, no Rio eu sei que existem lojas tradicionais de granel, não são nenhuma BEES, mas você vai sentir o quanto isso diminui o uso de plástico. E por fim, procure projetos que te conectem a pequenos produtores, enquanto a gente não tira do poder do agronegócio por maneiras diretas, a gente pode tirar o poder do agronegócio indo ao pequeno produtor quando possível.